Se há um tema na historiografia norte fluminense que curiosamente não atraiu o interesse dos pesquisadores é o tráfico de escravos. São mínimas as referências feitas pelos historiadores da planície para esse assunto tão fascinante. Sobressaem-se, então, os estudos de João Oscar, historiador, nascido em São João da Barra, considerado por alguns um “espião cubano”,. Ele se dedicou a historiografia local e publicou diversos livros, dentre eles o “Escravidão & Engenhos”, de 1985. Na obra, João produziu uma síntese comprometida com excelente documentação, a partir de arquivos e cartórios, que me serviu e muito como principal fonte para entender como se configurava os traficantes e suas relações na sociedade escravista de nossa região no passado.
Pasmem, mas tínhamos vários traficantes bem conhecidos aqui na região. Entre eles o André Gonçalves da Graça, oriundo de São João da Barra, descrito como receptor de escravos africanos em diversas documentações. Ele chamou a atenção da armada inglesa e de seus tripulantes que por aqui desembarcaram do navio Rose, em 1842, para apurar seu negócio lucrativo, vigorando desde o tráfico permitido ao tráfico clandestino, com a proibição imposta pela Lei de Eusébio de Queirós, de 1850.
A respeito da sua influência, basta mencionar a primeira visita de D. Pedro II, em abril de 1847, a São João da Barra, e se hospedou no belo prédio do comendador e traficante André Gonçalves da Graça, onde hoje funciona o Fórum local. No dia seguinte, visitou a residência do também traficante Joaquim Thomaz de Faria, na Barra, hoje Atafona, e, posteriormente, a fazenda São Pedro, do mesmo André da Graça, na praia de Manguinhos, foco maior do tráfico na região.
Provavelmente você deve ter ouvido falar dos achados arqueológicos, ossadas humanas, da Praia de Manguinhos, no município de São Francisco de Itabapoana, revelados em novembro do ano passado. Estive no local onde foram encontradas tais ossadas humanas, no qual o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional – IPHAN reconhece desde a década de 70 como um sítio arqueológico, cuja origem estaria relacionada ao período da escravidão. Para comprovar tal indício, a Fazenda São Pedro, fica a 400 metros do lugar onde ficava o Porto de Manguinhos, fazenda essa que pertencia ao ilustre traficante de escravos André Gonçalves da Graça, para onde eram enviados os escravos provenientes dos navios negreiros que desembarcavam no porto, para posteriormente serem comercializados para os produtores de açúcar da região.
Pois bem, esse comércio altamente lucrativo e que envolvia uma rede de interesses veio à tona através de vestígios arqueológicos, comprovando a existência do Porto de Manguinhos, aonde chegavam diversos navios com seres humanos escravizados e outras mercadorias para abastecer as fazendas na região. Muitos destes africanos colocados em condição de escravos chegavam enfraquecidos e acabavam morrendo devido à uma série de circunstâncias, entre elas as condições de viagem que eram extremamente desumanas. Eles eram, então, enterrados no local, em covas coletivas e rasas. Tudo indica que este local é um cemitério de escravos africanos recém-chegados ao país, os chamados “pretos novos”.Quando se fala em escravidão e tráfico de escravos, muitos acreditam que esse processo só ocorreu em outros lugares do país. Essa revelação mostra que assim como no restante do Brasil, o trabalho escravo fez parte da nossa realidade. É, portanto, a arqueologia a ferramenta de denúncia e de reparação do esquecimento, capaz de fazer emergir um passado escravocrata que se desdobra de diversas formas em nosso presente.
Graziela Escocard – Historiadora e Diretora do Museu Histórico de Campos dos Goytacazes.Instagram: @grazi.escocardE-mail: grazi.escocard@gmail.comCel.: 22 999391853