História por Graziela Escocard: você sabia que em Campos viveu um escravo cirurgião?

20 de setembro de 2020

Já leram ou ouviram falar da rádio novela considerada uma das mais conhecidas de Waldir Pinto de Carvalho, “O Escravo Cirurgião”, que, em 1988 (ano do centenário do célebre “13 de maio”), o autor transformou em livro?

Imagem de escravos cirurgiões e barbeiros do desenhista francês Jean-Baptiste Debret (1768-1848). Reprodução extraída do livro Viagem Pitoresca e Histórica ao Brasil.

Nesta obra é narrada a história de um escravo chamado de Inácio, que estudou para se tornar um cirurgião e curar seus companheiros de senzala por influência de um padre Jesuíta. Inspirada em fatos reais e adicionada uma boa dose de fantasia e drama, a narrativa é recheada de fortes diálogos. A história se desenvolve nos arredores do Solar do Colégio (onde hoje funciona o Arquivo Público Municipal, que leva o nome do escritor) e inicia-se assim:

“A voragem do tempo, causadora de tantas destruições, não conseguiu demolir as paredes da Igreja e do Colégio. O primeiro traço de civilização dos Campos dos Goytacazes, continua vivo aos olhos dos que passam pelas cercanias da legendária fazenda, cenário de tantas histórias incomuns”.

Pois bem! Como dizem os mais antigos, “onde há fumaça, há fogo”! Pensando nesse dito popular podemos desmistificar essa história que já se tornou lenda em nossa cidade.

Capa do livro “O Escravo Cirurgião”, de Waldir Pinto de Carvalho, 1988. Acervo particular.

O personagem, o escravo cirurgião, eternizado por Waldir Pinto de Carvalho, realmente viveu na antiga Fazenda dos Jesuítas, também conhecida como fazenda de Nossa Senhora da Conceição e Santo Inácio, propriedade do então conhecido como o vassalo “mais rico e poderoso de Portugal no Brasil”, o comerciante, Joaquim Vincente dos Reis.

Seu nome todo era Inácio Gonçalves de Siqueira, escravo enviado em 1770 para o Hospital militar, onde se tornou cirurgião, retornando para a Vila de São Salvador em 1781, ano no qual Joaquim Vincente dos Reis arrematou a fazenda.

Mas vale lembrar que era comum escravos se tornarem cirurgiões para cuidar da população desfavorecida e tratar dos problemas de saúde mais urgentes de quem precisava, não importava se ricos ou pobres.

Cabe ressaltar, ainda, que a utilização dessa mão de obra escrava especializada era mais barata do que o emprego de livres qualificados. Estudos indicam que ofícios como do Inácio, cirurgião, na sociedade brasileira naquele momento era de grande importância para a saúde local, desempenhados por escravos e libertos, numa época em que a medicina acadêmica disputava espaço com as práticas populares de cura.

No entanto, tais habilidades preocupavam seu dono, já que vinha se mostrando muito astuto e seria capaz até de insuflar outros escravos descontentes dentro de sua imensa propriedade, que abrigava quase dois mil cativos. De acordo com Couto Reis, em 1785 a Fazenda do Colégio possuía 765 crianças, o que corresponde a mais da metade de sua escravaria (51,6%), 340 homens e 377 mulheres, adultos escravizados. Esses números elevados de escravos, tidos como propriedade do Joaquim Vicente dos Reis, podem demostrar a preocupação deste vassalo em preservar sua propriedade e também sua integridade física.

Foto do Solar do Colégio, conhecida também como Fazendo de Nossa Senhora da Conceição e Santo Inácio, atual sede do Arquivo Público Municipal Waldir Pinto de Carvalho. Acervo de Genilson Soares.

Com receio de sofrer uma revolta de seus escravos e com muito medo de seu escravo cirurgião se vingar, utilizando das técnicas que aprendeu, o Joaquim, em 1796, “doou pelo amor de Deus à Santa Casa de Misericórdia do Reino e Cidade de Angola” o escravo Inácio Gonçalves de Siqueira e sua mulher Marta Soares, e acrescentou que eles “deveriam servir até morrer tanto na Santa Casa, quanto em seus Hospitais”, conforme o documento notarial integralmente transcrito por Júlio Feydit, em seu livro — “Subsídios para a História de Campos dos Goytacazes”.

No ano de sua “doação”, Inácio encontrava-se fugido, o que nos faz crer que Joaquim Vicente dos Reis de fato teve a intenção de enviá-lo para Angola, como castigo e punição. Uma inteligente alternativa, pois, desta forma, afastava esse escravo, perigosíssimo em sua perspectiva, do restante de sua escravaria.

Quadro a óleo do Joaquim Vicente dos Reis, proprietário do escravo cirurgião Ignácio Gonçalves de Siqueira, acervo da Santa Casa de Misericórdia de Campos dos Goytacazes

Há que se destacar ainda que se Joaquim quisesse apenas realizar um ato de benevolência doando um escravo, ele poderia muito bem fazê-lo para a Santa Casa de Misericórdia de Campos, localizada na Vila de São Salvador, onde, aliás, ocupou cargo de provedor entre os anos de 1796 e 1798.

Graziela Escocard – Historiadora e Diretora do Museu Histórico de Campos dos Goytacazes
Instagram: @grazi.escocard
E-mail: graziescocardr@gmail.com
Cel.: 22 999391853






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