Acompanhei de perto o trabalho que o Mídia Ninja fez nas manifestações de junho/julho no Rio de Janeiro e vi a importância da sua cobertura. Assisti a coragem desses jovens, dispostos a fazer um relato em tempo real das ações violentas de nossa polícia. Como tantos brasileiros, vi inúmeras mentiras oficiais serem desmentidas por reveladoras imagens geradas pelo Mídia Ninja. Também foi fantástico ver como a grande mídia teve sua parcialidade exposta pelo simples contraste com a cobertura em tempo real dos ninjas.
Em grande parte o Mídia Ninja é consequência de dois fatores que se somam para construir a mais radical transformação que se abate sobre a mídia tradicional.
De um lado, o cenário de convergência tecnológica vai tornando a internet um ambiente multimídia que fagocita as demais mídias. A inerente interatividade da internet coloca em xeque os modelos unidirecionais da grande mídia. E, ao mesmo tempo, embora não elimine as assimetrias entre grandes grupos econômicos e pequenas experiências colaborativas, a internet permite que todos possam postar seus próprios conteúdos, ameaçando o oligopólio da grande mídia. Essa parece ser a lição que a bancada doRoda Viva não entendeu (5/8, ver aqui).
De outro lado, esse cenário de convergência expôs de uma maneira inevitável os problemas de gestão das empresas familiares que controlam a mídia no Brasil. Com a convergência não é mais possível jogar a sujeira para baixo do tapete e vai ficando cada vez mais evidente que quase todos os grandes grupos de mídia do Brasil estão na bacia das almas, falindo, vendendo patrimônio e diminuindo de tamanho.
É nesse contexto que surgem o Mídia Ninja e diversas outras experiências de mídia colaborativa.
Euforia
Mas há que se controlar a euforia. O Mídia Ninja não é a resposta para todos os problemas gerados pelo oligopólio da grande mídia. Eles não são nem mesmo a resposta completa para o desafio de construirmos um jornalismo realmente democrático. Aliás, seria muito injusto cobrar-lhes algo desta envergadura.
Há pelo menos dois grandes desafios que o modelo de jornalismo do Mídia Ninja não consegue responder.
Quando eu ainda ouvia rádio FM, lembro que uma estação jovem do Rio de Janeiro fazia entrevistas na rua com perguntas estapafúrdias como o que o entrevistado achava do efeito estufa como critério de desempate na Copa do Mundo. E as falas postas no ar mostravam pessoas levando a sério aquelas perguntas e buscando oferecer respostas igualmente sérias. Minha hipótese é que o mundo tem ficado cada vez mais complexo, há cada vez mais informação disponível e a grande maioria é totalmente irrelevante. Encontrar sentido nessa barafunda não é tarefa simples.
A grande mídia nasceu e cresceu nos vendendo um serviço de construção de sentido nessa massa crescente de informações. Claro que o sentido que nos vendem traz embutido uma profunda orientação ideológica. Nem poderia ser diferente.
Ora, uma mídia democrática não deveria nos imputar um sentido único para os fatos. Mas, tampouco, poderia abrir mão de tentar construir sentidos possíveis. O jornalismo não pode abdicar do seu papel socialmente relevante de construir cenários, analisar contextos, propor alternativas e sugerir nexos causais. E isso a simples cobertura em tempo real não nos fornece. Muita informação sem contexto pode acabar sendo informação nenhuma.
A grande mídia também cumpriu um importante papel de construir pautas coletivas, que orientassem o debate na sociedade. Novamente, esse serviço vem acoplado com uma visão de mundo conservadora, quando não reacionária. Mas não devemos jogar o bebê fora junto com a água suja. Essa massa de mídias pode ser muito democrática, mas também pode nos empurrar para um mundo de hiperfragmentação ou, pior, de segmentação por nichos de mercado. Assim, militantes ambientalistas consomem apenas informações sobre meio ambiente enquanto fãs do BBB sabem cada vez mais sobre seu reality show favorito e cada um se isola no seu universo informativo.
Sem negar a conquista da interatividade e da oferta de informações segmentadas, resta o desafio de saber como construir pautas coletivas a partir de um jornalismo democrático e colaborativo.
Hipocrisia
De uma hora para outra, um bando de jornalistas passou a estar muito preocupado com a origem dos recursos do Mídia Ninja. Esses mesmos jornalistas jamais levantaram sua voz para criticar os empréstimos de pai para filho que sucessivos governos fizeram à grande imprensa brasileira. Ou ao fato da TV Globo ter surgido a partir de dinheiro recebido ilegalmente, vindo da norte-americana Time Life. Ou de como políticos lotearam entre si as outorgas de TV em boa parte do país. Ou ainda à venda de 30% da Abril para o grupo de mídia que deu sustentação ao apartheid sul-africano. Seu obediente silêncio de antes contrasta com o falatório de hoje para demonstrar o tamanho de sua parcialidade em favor de seus patrões.
Por outro lado, há tempos militantes da cultura criticam o Circuito Fora do Eixo (berço do Mídia Ninja) pela suposta contradição entre seu discurso em busca de alternativas para a produção cultural e sua dependência dos mecanismos de renúncia fiscal e dos editais estatais. Esse me parece ser um debate fundamental, não apenas no que se refere ao Fora do Eixo, mas, de uma forma mais ampla, para sermos capazes de entender como o fomento influencia a cultura produzida.
Gustavo Gindre é jornalista e integrante do Coletivo Intervozes; foi membro eleito do Comitê Gestor da Internet (CGI.br) por dois mandatos