Que bom que a esperança é infinda / e mantém viva a alegria… / Os galos cantam ainda / na aurora de cada dia. – Esses versinhos foram escritos há mais de 30 anos. Pena que perderam quase totalmente a validade. O último galo famoso foi aquele de Ivaiporá, que recentemente virou manchete após ter sido preso em razão de aborrecer os ouvidos da vizinhança.
O tal evento me fez lembrar um caso parecido. Eram meados dos anos 1960 e eu fazia na Rádio Cultura um programa chamado “Reportagem do Cotidiano”. Comentava notícias publicadas pelos jornais do dia e cartas enviadas pelos ouvintes. Um dia chegou uma carta cujo remetente se queixava do “incomodante barulho” de um galo que cantava de madrugada no quintal ao lado, roubando-lhe o precioso sono.
Sempre imaginei o canto do galo como uma das maravilhas da natureza, poesia pura, melodioso despertador jamais superado pela tecnologia. Aí surgiu um zangado insone a desqualificar o milenar kurukuku, rebaixando-o ao humilhante grau de “incomodante barulho”…
Puxa vida. Incomodante é barulho de moto com escapamento aberto. Canto de galo é música.
Outrora havia tantos. Meu avô, que era poeta e maestro de banda, tinha um de raça, peito estufado, pescoço esticado, pedigree de raiz suíça. O bacanudo cantava tão bonito que o vô pôs nele o nome de “Vicente Celestino”.
Passei a infância e uma parte da juventude numa pequena cidade do interior fluminense, São Fidélis, plantada por dois fradinhos capuchinhos à beira do rio Paraíba do Sul. Um lugarinho sereno e lírico, justa e adequadamente apelidado “Cidade Poema”.
Lá a gente curtia as madrugadas como as horas mais gostosamente sonoras do dia. Além do coro dos galos em cada quintal cantantes, havia outros sons inesquecíveis: a buzina da carrocinha do homem que trazia pão e leite e ia deixando nas portas das casas; a cantiga dos carros de bois vindos bem cedinho dos sítios trazendo cana para a antiga usina; o apito do guarda noturno; o pregão dos vendedores de peixes, frangos, frutas, verduras, doces da roça…
Também a orquestra da passarinhada nos pés de manga, sapoti, jabuticaba: sabiás, azulões, papa-capins… E a melodia das manhãs molhadas: a chuva mansa no telhado, o pinga-pinga das goteiras, o assobio do vento…
Porém insuperáveis mesmo eram as serenatas dos sábados. Um saxofone gorjeando o “Chão de estrelas”; um cavaquinho trinando o “Carinhoso”; um dueto de flautas soprando valsas; um seresteiro caprichando na imitação do Orlando Silva: “Tu és / divina e graciosa, / estátua majestosa / do amor / por Deus esculturada…”
Mas é isso, Bilac… Nem todos os ouvidos têm o fino dom de “ouvir e de entender estrelas”, menos ainda a graça de fruir e haurir os sons da madrugada. Tem gente que chega a chamar de “barulho” a nobre sinfonia matinal dos galos. Que pena…
(Crônica publicada no Jornal do Povo – Maringá – 29.7.2021)
Um escritor/poeta de raízes fidelense
Antônio Augusto de Assis, professor de Letras aposentado em 1997 pela Universidade Estadual de Maringá, onde se formou. Nascido em São Fidélis em 7 de abril de 1933, A.A. de Assis chegou em Maringá de Jeep, em 17 janeiro de 1955, todo empoeirado. Se hospedou no Hotel Esplanada, onde tomou o “melhor banho de toda a vida” – a água barrenta que escorreu pelo ralo nunca mais saiu da memória. Depois, recorda, foi jantar na Churrascaria Guarani.
Ele já perdeu as contas de quantos troféus, medalhas e diplomas ganhou por este Brasil afora com seus “poeminhas pequenininhos que contém grandes ideias”. É assim que o jornalista-professor-poeta Antônio Augusto de Assis, o A. A. de Assis, define trova, gênero literário que aprendeu a gostar com o avô.
Veio para montar uma loja de peças, que não tinha nada a ver com ele. Logo foi ao jornal “A Hora” para ver se conseguia publicar alguns textos vez ou outra e encontrou o dono do jornal, Chico de Souza, zangado. O redator do periódico, adoentado, não havia aparecido para trabalhar e Chico precisava de um editorial.
Convidado a fazer o material, aceitou. Chico havia brigado com Innocente Villanova Júnior, o primeiro prefeito da cidade, e queria uma critica ao adversário. “Fui na máquina e critiquei quem eu nem conhecia. Tinha acabado de chegar na cidade, mas depois eu conheci e gostei do velhinho. Sorte que meu nome não saiu no jornal”, recordou, rindo.
Trabalhou na Rádio Cultura, foi diretor da “Folha do Norte” de 1965 a 1977 e disse que queria fazer Jornalismo, “mas o curso mais próximo que existia da profissão era Letras”. Aí, deixou de ser periodista para ser professor. E, embora tenha aprendido a gostar de trovas ainda menino e escrever desde então, a aposentadoria foi um divisor de águas:
– Só depois de me aposentar tive tempo de ser o que eu gosto de ser, poeta.
O bom humor é uma marca de A. A. de Assis, que editou três livros “para dar para os amigos” e imagina ter escrito umas 10 mil trovas. “Tem verso no computador, nas gavetas, nas caixas… Não sei o que os herdeiros farão com esses troféus e papelada”, brinca, dizendo que a memória anda falhando ao mesmo tempo que detalha fatos e datas de décadas.
Em 2011, A.A de Assis tornou-se Cidadão Benemérito de Maringá e, como disse à época em entrevista ao jornalista Antônio Roberto de Paula, passou a ter duas nacionalidades. Contou que, um dia depois de ter chegado em Maringá, encontrou no Bar Central, “o pioneiro dos pioneiros” Ângelo Planas, encostado na porta com seu barrigão, que lhe disse:
– Menino, você vai gostar daqui. Maringá será o melhor lugar do mundo. Olhei em volta e não vi nada. Pensei comigo: ‘ele está exagerando’. Mas foi uma profecia e, para mim, Maringá é mesmo o melhor lugar do mundo.