Em recente programa televisivo, um dos debatedores, promotor de justiça, pareceu lisonjeado ao ser chamado de nazista: sinal de que seu trabalho é reconhecido. O promotor precisa ser rígido no exercício de suas funções, concluiu. Curiosamente, a tal rigidez consiste em flexionar a legislação de modo a otimizá-la a bem da sociedade.
Eis o autômato em seu mister: ele não reflete. Ele não é livre. Fabril, “recorre de todas as decisões”. De todas. É este o bom trabalho do nazista fundamental? Seguir o imperativo categórico do Terceiro Reich (aja de tal modo que o Führer, se souber de sua atitude, a aprove) onde a ética kantiana (se não puder dizer como fez, não faça) é subvertida? O promotor nazista pode e deve atuar assim porque a sociedade – qual delas? – aplaude?Ninguém nega que a realidade brasileira é das mais desiguais do planeta. Se é assim, a defesa de uma sociedade desigual é a defesa de sua desigualdade. Em última instância, a presença de agentes autoritários no sistema de justiça, sublinha essa desigualdade para facilitar o controle social, espinha dorsal da política criminal. É isso: eu recorro de todas e lavo as minhas mãos. Retórica? Quem sabe?A fala do promotor é infeliz, mas devemos nos permitir nela perscrutar alguma fecundidade.
Afinal, veio a público. Desprovida de flacidez, sua dureza não pode nos deixar incólumes. Isto, claro, se nos resta ainda algum espanto. Cabe aqui o alerta de Mario Sergio Cortella: está faltando espanto.Tão orgulhosa quanto útil, sua postura lança luz no formidável escuro do populismo penal, iluminando o datenismo midiático por dentro. Mesmo o mediador do debate, embora espantado com a palavra (nazista), legitimava o discurso nazista. Discurso causador de frisson no respeitável público. A altiva assunção pública de um “nazismo judicial” revela sua feição ideológica: redução das garantias processuais, aumento de penas, redução da maioridade penal, pena de morte etc. Aplauso público efusivo, ainda que a palavra espante. Lembremos com Shakespeare que a rosa terá o mesmo perfume, ainda que lhe déssemos outro nome.(Não à toa, a noção de justiça como valor utópico e horizonte norteador se esboroa.
Por acaso os populares gritos de “Justiça! Justiça!” em meio a rumorosos julgamentos – invariavelmente criminais – não são, em lúcida análise, gritos mudos de “Condena! Condena!” apenas com outra palavra, mais palatável? O respeitável público só concebe a injustiça e, por contraste, a ela busca responder com justiça. Uma justiça passível de ser vociferada não pode ser justa. É como se a injustiça (reconhecível) se reduzisse à desordem, ao erro, ao desvio e ao crime, a redenção justiceira (dita justiça) colocaria ordem, acerto, retidão e “pena exemplar” em seu lugar. Os Tribunais de Justiça não precisam mexer na fachada.)O pano de fundo é a lona do circo. Mas nós não somos os palhaços, como se costuma dizer.
Somos a entusiasmada plateia. Somos aqueles que direcionam o polegar ao solo num Coliseu sangrento. Aplaudimos com as mãos limpas de Pilatos a barbárie engomada, de terno e gravata. O nazismo judicial dispensa o ridículo bigodinho, embora conte com outras alegorias e adereços. É preciso alguma estampa… Mas, terá a palavra “nazismo” força para girar os refletores que iluminam o picadeiro em direção ao rosto da plateia? Talvez um intenso golpe de luz possa nos despertar do sono da barbárie. Ainda há tempo?A máxima de La Rochefoucauld ajuda: “A hipocrisia é a homenagem que o vício presta à virtude”.
A lacuna deixada pela falta de hipocrisia do autômato debatedor permite enxergar esse resto viciado, excessivo e obsceno que só se revela na sinceridade da infernal vocalização: para um promotor de justiça é um elogio ser chamado de nazista?O vício ridículo de grande parte de nossa sociedade precisa permanecer oculto para permanecer virtude. Tal qual o santo que desconfia da esmola em demasia, a monumental homenagem que o imodesto nazista presta à sociedade (com a rigidez pasteurizada de quem “recorre de todas”) deve servir de alerta. É claro que cumpre censurá-lo, mas já que está dito, ouçamos com ouvidos no amanhã. Tal qual o sambista que ao pensar no futuro não esquece do passado.
Não há outro caminho.Ouvir o autômato nazista de forma prodigiosa e inovadora, criadora e libertária se impõe. Se a lição de Roland Barthes é acertada no sentido de que “a língua, como desempenho de toda linguagem, não é nem reacionária, nem progressista; ela é simplesmente: fascista; pois o fascismo não é impedir de dizer, é obrigar a dizer”, no fundo, precisamos de menos hipocrisia. Precisamos que os nazistas do sistema penal confessem cada vez mais. E que, ao invés de orgulho, tenham vergonha na cara.Ricardo André de Souza – Defensor Público do Estado do Rio de Janeiro
Em recente programa televisivo, um dos debatedores, promotor de justiça, pareceu lisonjeado ao ser chamado de nazista: sinal de que seu trabalho é reconhecido. O promotor precisa ser rígido no exercício de suas funções, concluiu. Curiosamente, a tal rigidez consiste em flexionar a legislação de modo a otimizá-la a bem da sociedade.Eis o autômato em seu mister: ele não reflete. Ele não é livre. Fabril, “recorre de todas as decisões”. De todas. É este o bom trabalho do nazista fundamental? Seguir o imperativo categórico do Terceiro Reich (aja de tal modo que o Führer, se souber de sua atitude, a aprove) onde a ética kantiana (se não puder dizer como fez, não faça) é subvertida? O promotor nazista pode e deve atuar assim porque a sociedade – qual delas? – aplaude?
Ninguém nega que a realidade brasileira é das mais desiguais do planeta. Se é assim, a defesa de uma sociedade desigual é a defesa de sua desigualdade. Em última instância, a presença de agentes autoritários no sistema de justiça, sublinha essa desigualdade para facilitar o controle social, espinha dorsal da política criminal. É isso: eu recorro de todas e lavo as minhas mãos. Retórica? Quem sabe?
A fala do promotor é infeliz, mas devemos nos permitir nela perscrutar alguma fecundidade. Afinal, veio a público. Desprovida de flacidez, sua dureza não pode nos deixar incólumes. Isto, claro, se nos resta ainda algum espanto. Cabe aqui o alerta de Mario Sergio Cortella: está faltando espanto.Tão orgulhosa quanto útil, sua postura lança luz no formidável escuro do populismo penal, iluminando o datenismo midiático por dentro. Mesmo o mediador do debate, embora espantado com a palavra (nazista), legitimava o discurso nazista. Discurso causador de frisson no respeitável público. A altiva assunção pública de um “nazismo judicial” revela sua feição ideológica: redução das garantias processuais, aumento de penas, redução da maioridade penal, pena de morte etc. Aplauso público efusivo, ainda que a palavra espante. Lembremos com Shakespeare que a rosa terá o mesmo perfume, ainda que lhe déssemos outro nome.
(Não à toa, a noção de justiça como valor utópico e horizonte norteador se esboroa. Por acaso os populares gritos de “Justiça! Justiça!” em meio a rumorosos julgamentos – invariavelmente criminais – não são, em lúcida análise, gritos mudos de “Condena! Condena!” apenas com outra palavra, mais palatável? O respeitável público só concebe a injustiça e, por contraste, a ela busca responder com justiça. Uma justiça passível de ser vociferada não pode ser justa. É como se a injustiça (reconhecível) se reduzisse à desordem, ao erro, ao desvio e ao crime, a redenção justiceira (dita justiça) colocaria ordem, acerto, retidão e “pena exemplar” em seu lugar. Os Tribunais de Justiça não precisam mexer na fachada.)O pano de fundo é a lona do circo. Mas nós não somos os palhaços, como se costuma dizer. Somos a entusiasmada plateia. Somos aqueles que direcionam o polegar ao solo num Coliseu sangrento. Aplaudimos com as mãos limpas de Pilatos a barbárie engomada, de terno e gravata.
O nazismo judicial dispensa o ridículo bigodinho, embora conte com outras alegorias e adereços. É preciso alguma estampa… Mas, terá a palavra “nazismo” força para girar os refletores que iluminam o picadeiro em direção ao rosto da plateia? Talvez um intenso golpe de luz possa nos despertar do sono da barbárie. Ainda há tempo?
A máxima de La Rochefoucauld ajuda: “A hipocrisia é a homenagem que o vício presta à virtude”.
A lacuna deixada pela falta de hipocrisia do autômato debatedor permite enxergar esse resto viciado, excessivo e obsceno que só se revela na sinceridade da infernal vocalização: para um promotor de justiça é um elogio ser chamado de nazista?O vício ridículo de grande parte de nossa sociedade precisa permanecer oculto para permanecer virtude. Tal qual o santo que desconfia da esmola em demasia, a monumental homenagem que o imodesto nazista presta à sociedade (com a rigidez pasteurizada de quem “recorre de todas”) deve servir de alerta. É claro que cumpre censurá-lo, mas já que está dito, ouçamos com ouvidos no amanhã. Tal qual o sambista que ao pensar no futuro não esquece do passado. Não há outro caminho.
Ouvir o autômato nazista de forma prodigiosa e inovadora, criadora e libertária se impõe. Se a lição de Roland Barthes é acertada no sentido de que “a língua, como desempenho de toda linguagem, não é nem reacionária, nem progressista; ela é simplesmente: fascista; pois o fascismo não é impedir de dizer, é obrigar a dizer”, no fundo, precisamos de menos hipocrisia. Precisamos que os nazistas do sistema penal confessem cada vez mais. E que, ao invés de orgulho, tenham vergonha na cara.
Ricardo André de Souza – Defensor Público do Estado do Rio de Janeiro