Não havia brasileiro razoavelmente informado que já não soubesse que os black blocs sempre fizeram o possível e mais do que o razoável para que os policiais encarregados de reprimir seu vandalismo nas ruas das cidades brasileiras produzissem um mártir. Em 25 de janeiro, Fabrício Proteus Fonseca Mendonça Chaves, de 22 anos, foi baleado num protesto em São Paulo contra os gastos da Copa do Mundo. Poderia ter sido este, mas, socorrido pelos PMs e levado para a Santa Casa de Misericórdia, felizmente ele sobreviveu. Infelizmente, contudo, o cinegrafista da Band Santiago Andrade, de 49 anos, não teve idêntica sorte e morreu em consequência de ferimentos na cabeça, vítima da explosão de um rojão disparado no centro do Rio num protesto violento contra o reajuste da tarifa de transportes públicos. Eis o mártir!
Mas o cinegrafista, que trabalhava na cobertura da manifestação quando foi atingido, não foi vitimado pela violência policial, contra a qual dez entre dez políticos, militantes de direitos humanos, governantes politicamente corretos, acadêmicos bem-pensantes e repórteres apressados esbravejam. O buscapé disparado da calçada a poucos metros de onde a vítima estava foi criminosamente preparado por vândalos cujas feições estavam escondidas por máscaras e panos com os quais encobriam o rosto. O disparo podia não ter como objetivo especificamente aquele profissional. É até possível acreditar que seu alvo seria a tropa policial que procurava conter o quebra-quebra. Mas um repórter, fotógrafo ou cameraman presente na cena para transmitir informações ao público ou um inocente transeunte do anônimo exército das vítimas das balas perdidas na violência metropolitana brasileira fatalmente seria atingido. Pois a vareta que direciona o rojão para explodi-lo nas alturas foi quebrada e quem já soltou fogos de artifício sabe que nessas condições o buscapé não sobe, faz um trajeto aleatório e atinge o que estiver à frente. Assim, feriu a cabeça do jornalista a trabalho.
Naquela quinta-feira ninguém imaginou ser possível inculpar os black blocs pelo crime hediondo. Os telejornais da Rede Globo na noite do crime e na manhã seguinte reproduziram reportagem de Bernardo Menezes, da Globo News, atribuindo aos policiais o disparo do explosivo. Quem pôs o equívoco no ar não atinou para o fato de que a fogueira ateada na cabeça do colega jamais poderia ter sido produzida por bombas de efeito moral ou granadas de gás lacrimogêneo. Faltou um átimo de sensatez para evitar a divulgação do engano. O hábito de denunciar a violência policial levou o erro ao ar. Errar é humano, está certo, mas o jornalismo responsável requer mais diligência.
Depois que a polícia demonstrou o óbvio, William Bonner, o editor-chefe do Jornal Nacional, gaguejou um pedido de desculpas envergonhado e aproveitou para elogiar a humildade de voltar atrás ao reconhecer o erro. O reconhecimento do engano é uma virtude, mas é preciso que a autocrítica tenha relevo similar ao dado à falsidade divulgada.
E mais: é necessário também transmitir a convicção de que equívocos similares serão evitados. Não só pela emissora que engoliu uma “barriga” mastodôntica e cuspiu um mosquito. Mas também por todos os envolvidos na organização das manifestações populares, seja contra o que for; na manutenção da ordem pública nas ruas durante os protestos; na defesa jurídica dos manifestantes; e na cobertura e transmissão dos fatos para conhecimento da sociedade. Todos somos responsáveis. E todos devemos ter noção das evidências de que o cinegrafista foi vitimado pela leviandade geral vigente.
O mesmo Jornal Nacional reproduziu uma enxurrada de manifestações de súbita condenação aos vândalos. Entidades que representam advogados, juízes, donos de meios de comunicação, jornalistas e poderosos da República deixaram de execrar somente a polícia.
“Não é admissível que protestos democráticos sejam desvirtuados por quem não tem respeito pela vida humana”, registrou Dilma Rousseff no Twitter – uma platitude de dar dó. É lamentável que do alto do cargo mais importante da República ela se tenha comportado como se fosse apenas a candidata à própria reeleição. Reduzir tal crime a um slogan de campanha, utilizando o velório da vítima como extensão de seu palanque, é absurdo em si. Fazê-lo numa rede social, como numa fofoca de adolescentes, é espantoso. Assim como revolta a justificativa dada pelos vândalos em outra rede social, o Facebook, buscando inculpar a polícia por quatro mortes não noticiadas nem comentadas pelos meios de comunicação, tentando estabelecer uma relação de nexo inexistente e adotando uma contabilidade sinistra e sem sentido. Idêntico afã oportunista levou o presidente do Senado, Renan Calheiros (PMDB-AL), a procurar limpar a própria imagem com o sangue da vítima ao propor enquadrar os vândalos por crime de terrorismo.
Quando os políticos que vendem a alma por um punhado de votos descobrirão que os anarquistas que encerram as passeatas ditas pacíficas nas ruas são criminosos comuns que agridem e depredam, devendo ser punidos como tal? E que a eles se acumplicia quem defende o uso de máscaras, porque estas dificultam a identificação deles pela polícia? Os repórteres sempre benevolentes com os mascarados nunca perceberão que lidam com inimigos da verdade? Afinal, isso se comprovou no atentado ao cinegrafista e na agressão a outro que captava imagens em manifestação em defesa do tatuador por cujas mãos passou o rojão e que terminou mentindo descaradamente à polícia ao pedir delação premiada. E advogados menos empenhados em defendê-los do que em aparecer não prestam serviço à lei, mas trabalham pela impunidade de meros quadrilheiros.
Esta não é hora de caçar bruxas. Mas, sim, de tirar a máscara de quem esconde o rosto para delinquir e ficar impune. José Nêumanne é jornalista, poeta e escritor.